A época de domínio romano cessara. É plausível que, durante o século V d. C., a villa de São Cucufate tenha sido abandonada. Instalar-se-ão dois reinos sólidos na Península Ibérica. Os suevos escolhem o Noroeste Peninsular e criam o seu próprio Estado sediado em Braga (antiga Bracara Augusta). Por seu turno, os Visigodos controlarão a maior parte da Península Ibérica, terão a sua capital em Toledo e albergarão também toda a região alentejana e algarvia.
Crê-se que a partir do século VI ou XIII (existem as duas teorias como já mencionamos anteriormente noutros textos), surgiu um Mosteiro Beneditino com invocação a São Cucufate, mártir cristão degolado pelos romanos no período de intolerância religiosa. É plausível que estes monges, responsáveis pelo povoamento e organização territorial (são eles que estarão na origem da designação de Vila de Frades), tivessem incutido um planeamento económico, já que a produção agrícola era essencial para a subsistência da povoação medieval.
É certo que estes mesmos frades, tutelados pelo Mosteiro de São Vicente de Fora (Lisboa), outorgaram, em data desconhecida, um primeiro foral à terra que havia irremedievalmente de se perder. Mas a sua existência está devidamente documentada através do segundo foral, promulgado em 1512 por el-rei D. Manuel I que empreendeu uma grande reforma neste sector, tentando modernizar e actualizar muitos dos dados aí contidos.
Tanto as povoações de Vila de Frades e da Vidigueira receberam foral nessa data, isto é, numa fase de transição entre as Épocas Medieval e Moderna.
As questões que se colocam são mesmo estas - o Vinho surge mesmo referenciado nesses documentos relativamente a essas duas povoações? E em que contexto? Podemos infirmar efectivamente que o vinho manteve a tradição que já era visível desde o período romano?
Neste artigo, vamos responder a tudo isto.
Comecemos por analisar o foral relativo a Vila de Frades e extrair o que nos é dito sobre o vinho:
"Pagarssea primeiramente na dita villa por direito real o dizimo de todo o pam (e) vynho que se colher na dita villa e termo. E assy linho y azeite y legumes desta maneira a saber: o pam na eira y os legumes e o vynho a bica e o azeite y linho y tinta no tendal. E pagarsse o dito dizimo desta maneira a saber: de dez pagam huum de dizimo a Deos y aju(n)tam os nove que ficam com huum mais y daquelles dez pagam huum ao senhorio" (Excerto do Foral Manuelino de 1512 relativo a Vila de Frades, 01-06-1512, assinado por Fernão de Pina).
Os habitantes de Vila de Frades tinham que pagar presumivelmente dois dízimos, um à Coroa e outro ao Senhorio (talvez o eclesiástico - os frades do Mosteiro de São Cucufate). Ou seja, com a junção dos dois impostos, os agricultores tinham que abdicar de 20% da produção. Eram épocas bastante duras que exigiam tremendos esforços e sacrifícios do povo perante as classes privilegiadas. O vinho era um dos produtos taxados por este tributo, mas o pão, azeite, linho e tinta também não escapavam aos direitos reais e quiçá senhoriais. Estes produtos seriam os principais da vila (só se cobram direitos sobre o tipo de produção existente na vila).
Noutras partes, relativas aos impostos ou sua isenção, são referidos ainda outros produtos, nomeamente frutas, ortaliças e trigo. A referência a capões comprova-nos que a criação de gado seria também visível na localidade.
Neste foral de Vila de Frades de 1512, há a particularidade de o pão (cereais) e o vinho terem sido os primeiros produtos a ser mencionados, o que poderá ser um sinal de que seriam os mais cobiçados e prestigiados.
Imagem nº 1 - O Foral de Vila de Frades, onde o rei (principalmente este) e senhorio cobravam direitos (reguengos, sesmarias, quarentena) sobre a povoação que, em troca, ganharia alguma autonomia enquanto entidade concelhia.
Retirado do Livro dos Forais Novos de Entre Tejo e Odiana. Lisboa, [1501-1520]
"Pagarssea primeiramente na dita villa por direito real o dizimo de todo o pam (e) vynho que se colher na dita villa e termo. E assi do azeite y legumes desta maneira a saber: o pam na eira y os legumes e o vynho a bica e o azeite y linho y tinta no tendal. E pagasse o dito dizimo nesta maneira a saber: de dez pagam huum de dizimo a Deos y aju(n)tam os nove que ficam com huum mais y daquelles dez pagam huum ao senhorio (...) Item ha na dita villa y termo dous regemgos a saber huum que chamam das Reliquias e pagam delle do pam y azeite que agora nelle ha o quinto a saber de cinquo huum. E tem mais outro regemgo da [Codesseira] de que assy mesmo pagam de cinquo huum dos vinhos y azeites que se ora nelle colhem (...) E por quanto pollo dito foral foy loguo reservado pera a venda do nosso vinho o tempo do rellego que sam os primeiros tres meses de cada huum ano começados por primeiro dia de Janeiro no dito tempo ninhuma pessoa da dita villa ou termo nam vendera ninhuum vinho na dita villa sem licença do almoxerife nosso ou nosso official ou rendeiro delle so(b) pena de polla primeira vez ou segunda que for achado fazendo o comtrairo pagara por cada hua vez nove reais para o rellegueiro e se a terceira vez vender sem a dita licença ser-lhe-há emtornado ho vinho y quebrada a vasilha em que o tiver. E as pessoas que no tempo do Rellego quiserem trazer vinho à dita villa a vender de fora do termo della podello-ham fazer pagamdo ao Rellegeiro huum almude de cada hua carga. E se venderem o dito vinho de fora do termo sem a dita paga ou licença perderam o dito vinho e os ditos nossos officiaaes nam meteram no tempo do rellego nem venderam ninhuum outro vinho assy da villa como de fora della salvo o que na dita villa y termo se ouver dos nossos regemgos. Com tal emtendimento que se o dito vinho nosso nom abastar os ditos tres meses de rellego que logo di por diante em qualquer tempo que se acabar fique em liberdade da dita villa poder vender seus vinhos que quiser sem ninhuma pena nem paga. E se por ventura o nosso vinho for tanto que se nom possa vender nos ditos tres meses de rellego queremos e mandamos que passados os ditos tres meses nam se possa mais vender atavernado na dita villa nem no termo. E porque somos certificado que com a venda do nosso vinho se mete por alguuns oficiaaes do Rellego y rendeiros dellle outro muito vinho de que nossos povoos se sempre agravaram avemos por bem para isto evitar que tanto que nossos vinhos forem recolhidos ajam a vista delles os oficiaaes da camara da dita villa, os quaaes screveram passado dia dos sanctos em cada huum anno a cantidade y callidade do dito vinho y as vassilhas em que estever para se nom poder mais outro vinho com elle meter nem vender". (Excerto do Foral Manuelino de 1512 relativo à Vidigueira, 01-06-1512, assinado por Fernão de Pina)
A descrição introdutória deste foral da Vidigueira é semelhante à passagem inicial que também é visível no de Vila de Frades. Não haveria grandes diferenças quanto às potencialidades produtivas destes dois concelhos autónomos (há referência que aponta a existência de organismos municipais), embora partilhassem muitos factos em comum, nomeadamente ambos eram alvo da influência dos Duques de Bragança (ainda antes da chegada dos Gamas que só se oficializa em Dezembro de 1519) e de instituições religiosas (os beneditinos de São Cucufate detinham um maior poder em Vila de Frades, enquanto que a Paróquia de Santa Clara tutelava o culto religioso na Vidigueira medieval).
Também aqui nos parece que eram cobrados dois dízimos, um ao rei outro ao senhorio (seriam os duques de Bragança ou antes a Paróquia de Santa Clara?). Os produtos tributados aqui eram: o pão, o vinho, o azeite, os legumes, o linho e a tinta. Por isso, esta realidade era exactamente igual em ambos os forais.
Mas as menções ao vinho da Vidigueira são ainda maiores. Nesta vila, existiam dois reguengos, isto é, propriedades do rei que eram arrendadas a particulares. Num deles, e a troco da exploração dos recursos, o arrendatário teria que abdicar de um quinto da produção do vinho e azeite como meio de pagamento à coroa. Também no anterior foral de Vila de Frades, há referência a existência dum reguengo, onde se pagava um quinto de toda a produção (é possível que o vinho aí estivesse integrado, embora o documento não especifique mais nesse caso).
Na Vidigueira, era ainda célebre a imposição do relego que determinava a época (os três primeiros meses de cada ano!) em que se vendia exclusivamente o vinho do rei dentro das vilas e cidades. Evidentemente, que o vinho vinha das terras reguengas que se encontravam na vila. Este sistema nada equitativo favorecia os interesses da Coroa e quem ousasse vender o seu vinho nesse período trimestral estipulado, sem licença ou autorização dos oficiais da coroa, seria alvo de coimas e, em caso de reincidência, poderia ficar sem o seu vinho que era entornado e a vasilha, que o armazenava, seria destruída.
No foral da Vidigueira, há referência a outros produtos, nomeadamente frutas, ortaliças, alhos secos, cebolas, madeira, pescado (este último seria transportado doutros sítios e não escapava ao tributo da portagem)...
Há inclusive referências à pastorícia, nomeadamente a porcos, vacas e galinhas (aliás, o carniceiro da vila não escapava ao pagamento da açougagem que, neste caso concreto, custaria 740 reáis por ano).
Imagem nº 2 - No Foral da Vidigueira, encontramos um número considerável de menções ao seu vinho.
Retirado do Livro dos Forais Novos de Entre Tejo e Odiana. Lisboa, [1501-1520]
Em jeito de conclusão, e depois de termos despendido algum tempo na transcrição paleográfica de determinadas passagens destes dois documentos históricos da era manuelina, podemos concluir que a tradição vinícola manteve a sua influência na região desde a Idade Antiga com os romanos, e depois na transição da era medieval para a moderna.
A tributação régia e/ou senhorial abrangia evidentemente o vinho, o que comprova a sua produção nestas duas vilas. Este era o preço a pagar para que os dois concelhos mantivessem, na altura, a sua autonomia e identidade...
Referências Consultadas:
- Livro dos Forais Novos de Entre Tejo e Odiana. Lisboa, [1501-1520]; O mesmo pode ser consultado digitalmente em: http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4223237
- CAETANO, José Palma - Vidigueira e o seu concelho. 2º Ed. Beja: Câmara Municipal da Vidigueira, 1994.
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